Quando a icônica atriz Ruth de Souza partiu aos 98 anos, em 2019, o diretor Luiz Antonio Pilar sentiu que havia ficado em débito com a pioneira e desbravadora artista. Logo depois da pandemia, foi a vez da grande Léa Garcia nos deixar, aos 90, e, com isso, mais outra conta ficou em aberto. Disposto a liquidar de uma vez por todas com essas dívidas (históricas), Pilar, que foi indicado ao Emmy Awards Internacional — pelo elogiado trabalho no remake de “Sinhá Moça” (2006), da TV Globo — e venceu o Prêmio Shell de Melhor Direção, na 34ª edição, por “Leci Brandão, na Palma da Mão”, decidiu, enfim, levar aos palcos a grande homenagem que gostaria de ter feito em vida para essas duas figuras seminais da cultura negra brasileira: a peça “Ruth & Léa”, que estreia no dia 7 de junho no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana, com Bárbara Reis e Ivy Souza nos papéis principais.

A vontade de idealizar um trabalho sobre Ruth e Léa — primeira brasileira a concorrer à Palma de Ouro no Festival de Cannes, por “Orfeu Negro” (1959) – começou, na verdade, em 2003, explica Pilar, e por força do acaso. “A Ruth me chamou à casa dela, era um sábado. Ela tinha esse hábito e eu gostava muito de visitá-la. Chegando lá, ela costumava falar de TV e cinema, entre um biscoitinho e um café, e, para a minha surpresa, também estava a Léa. Eu e ela não sabíamos que iríamos nos ver lá. Então, Ruth me explicou o seguinte: ‘Todo mundo acha que somos inimigas, mas não somos’”, recorda ele.
Já naquela época, a reverenciada atriz, primeira brasileira a ser indicada a um prêmio internacional — Melhor Atriz no Festival de Veneza por “Sinhá Moça” (1953) —, fez uma crítica sábia e absolutamente contemporânea sobre a escalação das atrizes pretas no showbiz brasileiro. “Ou é a Léa, ou sou eu, ou é a Zezé (Motta). E isso dá a impressão de que estamos disputando entre nós. São eles que nos colocam nessa posição e nos oferecem pouquíssimas coisas. Eu queria muito fazer uma peça com a Léa, sob a sua direção”, confidenciou Ruth a Pilar, durante o encontro.
No espetáculo, cujo cenário de Lorena Lima remete a um estúdio de cinema, duas atrizes, Zezé e Elisa — em homenagem a Zezé Motta e Elisa Lucinda —, se encontram para o primeiro dia de ensaio de um filme musical sobre as vidas de Ruth de Souza e Léa Garcia, respectivamente, Bárbara Reis e Ivy Souza. Enquanto se preparam, com figurinos assinados por Rute Alves, – que se inspirou na obra do falecido escultor Emanoel Araújo, curador e fundador do Museu AfroBrasil, muito amigo de Ruth e Léa – e sob a luz de Gustavo e Marcelo Andrade, elas refletem sobre as trajetórias dessas duas icônicas atrizes e compartilham seus desejos, anseios e realizações. Este encontro, em busca de respostas, é testemunhado por Gláucia Negreiros, pianista do espetáculo.

Após uma experiência de sucesso na novela “Todas as Flores”, de João Emanuel Carneiro, Pilar volta a dirigir Bárbara Reis. “Agora, no teatro, tenho adquirido um novo olhar a partir do olhar cênico dele, com a liberdade de arriscar e também ser ridícula. É um olhar generoso, que faz toda a diferença na construção das cenas. Falamos desses dois ícones e da cena teatral preta da época delas. A mensagem principal é: nada se constrói sozinho”, explica a atriz.
“É um misto de euforia e realização viver essa experiência”, afirma ela. “Retornar ao palco após sete anos afastada me traz um senso de responsabilidade grande, mas também desprendimento. O maior desafio nos ensaios tem sido conter a minha energia para dar vida a Ruth, que era mais contida do que eu”, entrega.
Durante este processo, Bárbara e Ivy, que não se conheciam, foram naturalmente criando laços. “Tem sido maravilhoso. Ivy é uma atriz sensível, generosa e muito aberta. Nossa conexão foi imediata e está sendo levada para a cena”, conta.
Ivy, que conheceu Léa em 2019, quando a veterana atriz foi assisti-la no espetáculo “Isto É um Negro”, vibra com a oportunidade de encarná-la no palco. “Está sendo muito marcante para mim. Ela sempre foi uma das minhas maiores referências, tenho profunda admiração por Léa. Sendo uma atriz negra, tenho a consciência de como ela e a Ruth puderam mobilizar tantas coisas com as parcas possibilidades que tiveram, cada uma com seu temperamento e trajetória. E fico pensando: qual o futuro é possível plantar agora? Para que um artista negro possa viver a experiência de exercer a sua arte como ofício, é preciso suporte e rede”, reflete.
SERVIÇO
Teatro Glaucio Gil. Praça Cardeal Arcoverde s/nº, Copacabana.
Estreia dia 7 de junho. Até
Sáb a seg, às 20h.
Ingressos: R$ 60 (inteira) R$ 30 (meia), R$ 20 (vale cultura e passaporte cultural)
À venda na bilheteria do teatro (sem taxa de conveniência)
Ponto de venda: Teatro Gláucio Gil
Funcionamento: Seg a dom, das 16h às 20h
Venda online: https://funarj.eleventickets.com/#!/apresentacao/c13f2b75355fd23e8ccddfbb09225615687cf7b5