Quatro anos após “Roteiro pra Aïnouz (Vol. 2)”, Don L finalmente presenteia os fãs com seu aguardado novo álbum, “CARO Vapor II – Qual a forma de pagamento?”, lançado nesta segunda-feira (16). Mantendo sua marca registrada — críticas ao capitalismo tardio e reverências a Fortaleza, cidade onde cresceu e iniciou sua trajetória —, o rapper inova ao tecer uma ponte entre o rap e diversas sonoridades do Sul Global, como bossa jazz, MPB, baião, funk e amapiano.
Com 15 faixas, o projeto é uma continuação da mixtape “Caro Vapor / Vida e Veneno de Don L” (2013), seu primeiro trabalho solo após o fim do grupo Costa a Costa. O álbum surge de uma extensa pesquisa musical, mergulhando especialmente na MPB da segunda metade do século XX e em movimentos culturais cearenses, como o Pessoal do Ceará.
Colaborações e referências que transcendem fronteiras
Entre as participações especiais, nomes como Fernando Catatau, Alice Caymmi, Alt Niss, Anelis Assumpção, Giovani Cidreira e Luiza Lian ajudam a costurar as diferentes camadas sonoras do disco, com homenagens a ícones como Dorival Caymmi, Itamar Assumpção e Milton Nascimento. Um dos momentos mais marcantes vem em forma de sample: Rodger Rogério, da lendária faixa “Susto” (1975), ressurge em “Iminência Parda”, conectando passado e presente.
Em uma audição exclusiva para convidados no início de junho, Don L revelou que, embora o álbum tenha sido gravado em São Paulo, sua alma permanece em Fortaleza. “Acho que eu carrego a maresia de Fortal, cara. Não sai de mim. É muito parte da minha alma mesmo”, afirma. Essa conexão transborda em faixas como “Saudade do Mar”, que evoca o litoral cearense e dialoga com a musicalidade de Dorival Caymmi — avô de Alice Caymmi, que participa da música.
“Caymmi falava muito de um lugar na Bahia que era muito dele, sabe? Nas músicas dele, você sente o cheiro do mar, o sal, a praia. Parece que é transportado para lá”, comenta Don L. “Eu tento fazer o mesmo com a minha saudade, como se as pessoas pudessem sentir essa brisa da maresia.”
Flow, sotaque e identidade: Fortaleza como raiz
O artista ressalta que sua identidade musical é inseparável de suas origens: “Ninguém escuta minhas músicas — principalmente em São Paulo — e acha que eu sou de lá. Meu flow, o jeito que uso a língua, tudo tem a ver com meu sotaque, com o que trouxe de Fortal.”
O álbum transita entre love songs ensolaradas e rimas políticas, sempre ancorado em batidas brasileiras e latino-americanas. Temas como pertencimento, desigualdade e a busca por dignidade — seja no amor ou na luta social — criam um diálogo entre passado e futuro. Em “iMigrante”, Don L reflete sobre sua experiência como nordestino em São Paulo, traçando paralelos com as crises migratórias globais.
“Sou um imigrante no mundo”, afirma. “Antes, era uma questão de lugar dentro da própria Fortaleza, onde fronteiras invisíveis separam o morro do Mucuripe. Em São Paulo, essas divisas ficam ainda mais claras.” O disco também ecoa o cenário político atual, criticando o fechamento de fronteiras e a xenofobia crescente, como nos EUA de Trump.
“É um álbum sobre o espírito do tempo. O mundo vive a declaração de fronteiras que sempre existiram, mas que agora são escancaradas”, conclui. Entre memórias da Praia do Futuro — onde vendia CDs piratas para sobreviver — e sonhos de um futuro coletivo, “CARO Vapor II” consolida Don L como um dos grandes narradores da música brasileira contemporânea.
